Desatando os nós de Carolina Maria de Jesus

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O relato abaixo aproveita a celebração da literatura e cultura negras para destacar a 6ª edição da FlinkSampa, que será realizada de 19 a 21/11, na Faculdade Zumbi dos Palmares (Av. Santos Dumont, 843), em meio ao Dia da Consciência Negra, comemorado na próxima terça-feira (20/11).

Nesta edição, o jornalista e escritor Tom Farias é o curador do evento – e autor da mais completa biografia de Carolina. Conceição Evaristo, escritora, é a homenageada da vez. Os dois estarão juntos na mesa de debate Atualidade de Carolina Maria de Jesus: novos legados, na terça-feira (20/11), a partir das 14h. A programação completa do evento pode ser conferida no site do evento.

Desatando os nós de Carolina Maria de Jesus

[…] Foram pouco mais de dois anos para ter contato com a obra de Carolina. Chegada a Bienal do Livro de 2018, um objetivo: encontrar a tríade: Quarto de Despejo (Editora Ática/Zumbi dos Palmares); a HQ Carlolina, de João Pinheiro e Sirlene Barbosa (Editora Veneta) e Carolina: uma biografia, do jornalista Tom Farias (Editora Malê). Mal saberia Carolina que a Bienal ficaria no mesmo universo em que sonhava em ter seu nome estampado numa capa de livro: às margens do Rio Tietê, a poucos quilômetros de onde brotava a favela do Canindé.

Quarto de Despejo: ?Diário de Uma Favelada, seu primeiro livro, é um retrato cortante e atual de um Brasil que custa a vingar – as histórias ali narradas são das décadas de 1950 e 1960. As mazelas da favela, o racismo, a vida dura de quem tem que encontrar no lixo o alento – ?seja o alimento, seja o papel que a autora usava para escrever seu diário, poemas, músicas… E para garantir o sustento da família: ela e seus três filhos, José Carlos, João José e Vera Eunice.

[…] Mais surpresa ainda quando descubro que a vida de Carolina estava a poucos quilômetros de onde vivo: o Canindé. A favela, onde hoje está o estádio da Portuguesa, ficava à beira de um rio e de uma marginal em condições abjetas de (sobre)vivência.

Nas páginas do livro, locais que me são muito caros: ruas próximas ao que hoje é a Ponte Pequena, algumas andanças de Carolina pela Av. Cruzeiro do Sul ou pela Rua Voluntários da Pátria… É: ser jornalista de um veículo que cobre apenas a zona norte de São Paulo faz ter uma certa reverência por tudo que é de histórico e que tenha passado por essas cercanias…

Se Quarto de Despejo é um relato específico de um período, a HQ é biográfica. Entre desenhos e reminiscências, o porvir: a vida na tão sonhada casa de alvenaria. Vida ainda insípida: o preconceito e o racismo se faziam presente em Osasco, primeiro lugar que Carolina foi depois de sair da favela e, depois, novamente à zona norte.

Em um quadro cortante, a revelação: “o fato de ser negra e ex-moradora da favela contribuíram para a rejeição dos vizinhos de Santana”. […] Perdoe-os, Carolina. Parte dessa população não está à altura de sua grandeza.

[…] Palavras ora doces, ora cortantes, em uma escrita real, permeada por erros de português de quem estudou até o segundo ano do primário, mas não se abateu e levou adiante o sonho. De tantos sonhos debaixo do barracão, de onde ainda era possível ver estrelas, mas de onde se via os abutres?—?sejam eles os animais, em meio ao lamaçal, sejam eles os cruéis que despejavam comida estragada aos favelados.

Seus escritos da realidade que vivia, como: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual?—?a fome!”, dão a dimensão de uma sociedade que pouco fez (e faz) por seus despejados, que vivem à sombra de coisas que parecem se repetir.

Carolina fala por todos aqueles que ainda estão jogados à própria sorte, ainda que a escritora também revelasse suas inquietudes e mesmo preconceitos (os nortistas briguentos que invadiram a favela do Canindé, a surra que tal mulher mereceu). Mas, ao mesmo tempo, seria julgada pelo tribunal da internet como uma feminista (para estes julgadores, a acepção incorreta do termo), já que não julgava as mulheres “da vida” e não fazia questão de ter homens ao seu lado. Também seria julgada por desmitificar a impressão de que favela é comunidade, em que todos vivem felizes, ainda que nas dificuldades.

Carolina Maria de Jesus e o jornalista Audálio Dantas

Extremamente verdadeira, sobretudo humana, Carolina Maria de Jesus é o retrato de um Brasil que vagueia pela intolerância e racismo, peca pelo desprezo, ouve de fajutos fardados que o DNA do povo é formado pela “indolência do índio e pela malandragem do negro”, ouve de jornalistas zombeteiros que afirmam que “é coisa de preto” (por outro lado, um jornalista, Audálio Dantas, foi quem descobriu a escritora), vê uma justiça partidária, o extermínio nos quartos de despejo que se espalham cada vez mais.

Carolina Maria de Jesus deveria ser leitura obrigatória para todo brasileiro.

 *Texto publicado por Bruno Viterbo no Medium, em agosto de 2018. Confira a íntegra no Medium.